Crónicas do Myanmar: O trilho da montanha até ao Inle Lake – Parte II

O sol já se tinha posto quando concluímos os vinte quilómetros que nos levaram aos 1800 metros de altitude e à aldeia onde iriamos pernoitar. Segundo nos explicou James, o nosso guia, a política da empresa que contratámos, a  Ko Min Kalaw Trekking Service, baseia-se na rotatividade entre alojamentos, para que todos os habitantes pudessem ganhar com a presença dos turistas, numa perspetiva de “fare trade”, o que nos deixou, verdadeiramente, satisfeitos.

À semelhança da habitação que visitámos durante a tarde, a casa da família que nos acolheu era construída em madeira, composta por rés-do-chão e primeiro andar. Tal como referi na crónica anterior, as condições de higiene correspondiam, precisamente, às (minhas) expectativas, e ao pior pesadelo dos nossos companheiros de viagem, o Andre e a Talia: Eram praticamente inexistentes. Devo confessar, que não pude conter o riso: “Estavam à espera do quê? Do WC do Ritz? Meninos”. 

Por mais anos que viva, nunca esquecerei o terror nos olhos da Talia, ao perceber que havia uma única casa-de-banho para toda a aldeia, que é como quem diz, um buraco no chão pejado de aranhas e outros insetos, e, a “banheira”, não era mais do que um tanque coletivo. Secretamente, agradeci por temos escolhido a opção de dois dias e uma noite, ao invés de duas, já que não fui capaz de tomar banho ou usar a “sanita”. É que a pessoa não vai para nova, e necessita de alguma higiene e conforto. “Contratempos” à parte, posso assegurar, meus 5. 75 leitores, que, apesar de a aldeia não possuir luz elétrica ou água canalizada, esta, foi, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais inesquecíveis da minha vida. Os nossos anfitriões eram uma família tipicamente birmanesa, composta por várias gerações: avós, pais, filhos e netos, num total de cerca de dez pessoas. Apesar de não falarem uma única palavra de inglês, foram super simpáticos e tentaram comunicar por gestos e sorrisos.

Estávamos, verdadeiramente, exaustos e com dores musculares lancinantes, mas, ainda assim, houve tempo para saborear a inacreditável refeição confecionada pelo nosso amado cozinheiro, que teve o cuidado de preparar batatas fritas, não fosse alguém não gostar de arroz. Caris, vegetais salteados com amendoins, noodles fritos, estava tudo maravilhoso. 

No fim, James, contou-nos um pouco sobre a história dos anfitriões, e dos costumes matrimoniais birmaneses, que impunham que a noiva fosse viver com os sogros, daí haver tanta gente a viver no mesmo espaço, já que haviam dois filhos homens, com as respetivas esposas e crianças. Apesar de espaçosa, a casa não tinha divisões definidas, pelo que, cada casal, tinha uma espécie de tenda para si, o que quer dizer que a privacidade era, praticamente, inexistente. Homem de muitos talentos, ao perceber que estávamos a morrer de dores musculares, brindou-nos com uma massagem, que confesso, me ter sabido pela vida.A noite foi passada no andar superior, numa tenda com mosquiteiro, como podem ver pela foto. Foi super awkward ouvir os barulhos produzidos, sem qualquer pudor, pelos habitantes, como se de um dia normal se tratasse. Gases, ressonos, envolvimento intimo. Enfim, houve de tudo, o que me fez passar a noite em claro. Contudo, nem tudo foi mau. A sensação de acordar, com o nascer do sol, no topo da montanha, foi inacreditável.  Pela manhã, consegui escarpar e circular, livremente, pelas ruas da aldeia e perceber que as crianças usavam a via publica como retrete e que, não obstante o isolamento, as rotinas daquelas famílias não eram diferentes das nossas, divididas entre o trabalho e os afazeres domésticos. 

A frescura do orvalho, o frio, o cheiro dos animais e do mega pequeno-almoço a ser preparado, vão ficar-me, para sempre, na memória. O Myanmar, é, sem dúvida, um local mágico, onde cabem muitas verdades e muitas histórias. A nossa, estava prestes a continuar, e, após uma refeição digna de um rei, temperada por um misto de alivio e saudade, lá nos despedimos dos nossos anfitriões, e pusemos pés ao caminho. 

Já o Andre e a Talia, os nossos companheiros de viagem, mal podiam esconder o alívio em zarpar dali para fora em direção ao melhor hotel do Inle Lake.

Apesar de, fisicamente, menos exigente, a segunda parte da caminhada é a mais perigosa, já que implica descidas acentuadas pela montanha, em caminhos de pedra, por vezes escorregadios, entre paisagens de cortar a respiração. O nosso guia, prosseguiu a aula de agricultura, e foi muito enriquecedor mergulhar, uma vez mais, no modo de vida destas comunidades, e na forma como cultivavam o seu sustento. Milho, tamarindo, frutas e legumes, proliferavam por entre as pequenas quintas de produção familiar, com maquinas rudimentares, ainda dependentes do trabalho braçal, onde os agricultores paravam para nos cumprimentar e dar dois dedos de conversa. 

Por entre risos e gargalhadas, James lá nos foi contando um pouco da história de cada povoação, distribuindo medicamentos e ouvindo as novidades e as tragédias do dia-a-dia. De facto, a resiliência destas pessoas é inacreditável. Sem eletricidade, água canalizada ou cuidados médicos, pareciam genuinamente felizes. Afinal, a vida é feita das pequenas coisas, e, o Myanmar, acaba por nos dar uma grande lição de humildade e foco no que realmente importa. 

Pela hora de almoço, e após quase sete horas de caminhada, já tínhamos percorrido os cerca de vinte quilómetros que nos separavam do Inle Lake. Com uma mota, escondido junto a uma ponte, um oficial do governo esperava pelo incauto turista para cobrar os 15 000 Kyats da entrada no lago: cerca de dez euros. No Myanmar, (quase) nada funciona, à exceção da cobrança de impostos. 

A morrer de fome, fomos colados num barco, cuja estabilidade era (muito) questionável, e levados ao “restaurante” sobre estacas, onde o nosso cozinheiro nos surpreendeu, uma ultima vez, com uma refeição de sopa, noodles e fruta fresca, como há muito não comia.

Por entre risos, lágrimas, e um profundo agradecimento, lá nos despedimos do nosso incrível guia, do Andre e da Talia, trocando contactos, mas com a certeza de que, esta, era, apenas, uma formalidade, já que não nos voltaríamos a ver. No entanto, apesar de tudo, estávamos felizes com a perspetiva de uma nova aventura. Considerado um dos maiores lagos vulcânicos do mundo, com uma superfície de 116 km, o Inle Lake era ainda mais belo do esperávamos, pelo que era difícil conter o enorme entusiasmo pela oportunidade de o descobrir. (Não fujam: To be continued). 

Não perca a crónica anterior:

Crónicas do Myanmar: O trilho da montanha até ao Inle Lake – Parte I

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