Crónica do Tempo que Resta

O
meu avô tem 93 anos e Alzheimer, em estado muito avançado. Estou certa de que
não me reconhece há uns dois anos. Mais ou menos desde a altura em que a minha
avó morreu. Curiosamente, reconhece sempre o meu irmão, que vem pouco a
Portugal. Levanta os olhos azuis e sussurra: “Pedro”. Estranho. E eu que sempre
achei que era a neta querida. [Just Kidding]. Por mais voltas que dê, não me
consigo habituar a vê-lo assim. Um homem ativo, que trabalhou até aos 80 anos.
Que geriu a vida e a família com punho de ferro. Dono de uma moral, de uma
educação, e de uma correção inquestionáveis. Ainda me lembro dos dias em que me
levava ao Porto de Abrigo e me ensinava o nome dos barcos. Parece que foi
ontem. Não me consigo conformar. A doença fez com que o meu avô passasse a
viver num tempo diferente do nosso. Numa dimensão em que as pessoas não vivem.
Limitam-se a existir. Vou vê-lo, sempre que posso, na companhia da minha mãe. Falamos
muito, mas não tenho a certeza se nos ouve. Está quase sempre “lá”, onde quer
que “lá” fique. Custa-me vê-lo assim, mas sei que agora está melhor, com todos
os cuidados de que necessita. Seja como for, um Lar da Terceira Idade não é um
sítio fácil. Em última análise, acaba por ser, literalmente, o fim da linha.
Aos poucos, vou conhecendo a história dos outros “utentes”. Uma senhora
pergunta incessantemente a que horas “vamos apanhar o autocarro”, porque tem
que ir fazer o jantar, já que “a família está à espera”. Foi enfermeira e
espera, desesperadamente, por uma filha que nunca chega. “Está a trabalhar”,
conforta-a a mina mãe. “Quando puder passa por cá”. Outra grita, sem parar: “anda
cá”, enquanto me tenta agarrar a mão. Assumo que apenas queira algum calor
humano. Foi abandonada pela família, que não a vai visitar há anos. Histórias
já de si tristes, a que o Alzheimer fez questão de acrescentar um ponto negro. Sempre
que lá vou, reflito na minha própria vida. Lembro-me da infância, dos momentos
que passei com os meus avós. Do cheiro a bolo, dos linguados frescos para o
almoço. Do cheiro das redes no armazém do barco. Em bom rigor, quando
envelhecer não vou ter um descendente direto que cuide de mim. Não vou ter a
sorte do meu avô e de outros velhotes
que lá estão, que são amados pelas famílias. Se calhar, devia repensar “o tempo
que resta”, mas, lamentavelmente, não consigo. É pena. 

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